Ao ler o Livro das horas, da Nélida Pinõn, dou de cara com este pequeno capítulo que é das coisas mais lindas que li nos últimos tempos:
"Não tenho filhos, mas leitores, capazes por si sós de defenderem a civilização contra os avanços da barbárie. A eles nomeio sucessores de uma linhagem irrenunciável. E, embora duvide às vezes se vale defender alguns princípios hoje contestados, persisto em inscrever certas normas no código dos direitos humanos.
Não conheço os leitores e nem sei onde vivem no território brasileiro. Mas penso um dia convidá-las a serem parceiros, sócios, aliados das minhas aventuras narrativas. A me conhecerem pessoalmente, trazendo debaixo do braço algum romance de Machado de Assis. E que vejam como é a aparência de quem se habituou a registrar os enredos que também eles viveram junto com suas famílias.
Instalados em minha sala da Lagoa, eu lhes ofereceria um guaraná Antarctica, um cafezinho, e biscoitos de polvilho. Juntos, mergulharíamos nas águas barrentas das palavras, no redemoinho vertiginoso das emoções, nas trevas perturbadoras dos sentimentos ainda sem nome e definição precisa.
Ao lhes mostrar os recantos da casa e do estúdio onde escrevo e guardo papéis obedecendo à vocação de amanuense, eu os regalaria com um livro de minha autoria, para que o guardassem na estante, na mesinha de noite, ou no chão de barro socado de algum casebre às margens do rio Negro. E que o lessem um dia desavisados, de forma inadvertida, e sem preconceitos, prontos a chorar caso alguma sentença os enternecesse. E não hesitassem por sua vez em repudiar o livro, que lhes estaria causando dano.
Não importa o que façam. Peço-lhes apenas que aceitem com boa vontade o coração desta escriba que só tem de seu a língua e os sentimentos herdados de sua grei. E acaso há que pedir mais?"