Aqui em Curitiba, e em quase todo Paraná, chove há aproximadamente dois meses. Não bastassem o atraso do preparo do solo e plantio, as enchentes, os prejuízos para horticultura, um problema quase incomensurável se sobrepõe sem que a maioria perceba: o astral. Deus me livre! Está difícil suportar o humor do povo, inclusive o meu. É como se o perene cinza do céu e do asfalto se expandisse para dentro de nós, roubando o lugar de todo colorido que porventura habitasse nossa alma. Além de ele, o cinza, fixar-se em nossa pele carente de um pouco de sol. E não é só o cinza. Ainda que esta cor sem graça seja capaz, sozinha, de quando em excesso enterrar a alegria, há também a umidade. Se a estiagem favorece a aridez humana, a umidade nos embolora? Ficamos mofados? Tanto faz. Só resta tomarmos consciência disso e controlarmos o nível de grossura que produzimos. Tentarmos viver, apesar da chuva. E lembrarmos sempre que o porteiro, o amigo, o vizinho, o colega, o chefe e o subalterno... a culpa não é deles. Que também estão ficando cinza.
Autor: MMR
Budapeste
Praga
Viena
As verdades de Márcia *
Se há duas verdades nas quais acredito, elas são: tudo precisa fazer sentido; e nada acontece em vão.
Conto agora um só fato, ocorrido há 36 anos, e que bem ilustra minha convicção.
Quando ingressei no 1º ano primário, equivalente hoje ao Ensino Fundamental, era comum aplicarem nas crianças os famigerados testes de Q.I. (quociente de inteligência). Sem qualquer modéstia, o resultado do meu beirou os 150, índice bastante acima da média. Minha mãe, coruja como quase todas, celebrava: “se Victor (meu irmão) conseguiu aprender a ler muito rápido com seus 130 de Q.I., Márcia vai ler em uma semana”.
Estas palavras minha mãe teve que engolir. Ao contrário do seu prognóstico, fui a última criança de minha turma a aprender. Para desespero de todos, era chegado agosto e nada desta aqui ler ou escrever algo além do nome decorado. A professora, provavelmente colocando em dúvida sua capacidade, compensava-me com mimos o que julgava ser (imagino) uma incompetência sua.
Um dia andávamos de bonde em Porto Alegre quando olho os anúncios acima das pequenas janelas do veículo e começo a lê-los todinhos... um por um. E já tendo lido todos, olho para fora e começo a ler os outdoors. Assim mesmo, rapidinho, com o bonde em movimento.
Meu pai, já desesperançado, não acreditava que estivesse realmente lendo e supôs que o gênio aqui houvesse decorado os anúncios. Como se alguém algum dia os tivessem lido para mim.
Ao chegar em casa, a primeira atitude do meu pai foi abrir uma página do Correio do Povo em minha frente e mandar que eu lesse aqueles “tijolões”, textos enormes em páginas com pouquíssimas ilustrações ou fotos.
Reza a lenda que eu li. E que eu li bem. Sem gaguejar ou tropeçar nas letras, algo inusitado para quem, até 2 horas atrás, era completamente analfabeta.
Desta história concluo que a chatice é minha velha companheira. Que decorar o alfabeto me era fácil, impossível para mim seria ler mal. E nos meus mecanismos internos que hoje identifico, eu só conseguiria ler depois que compreendesse o sentido daquilo. Não me bastava juntar letras e sílabas em palavras e palavras em frases. Elas teriam que fazer o sentido que só a fluência permite. Não poderia ficar tão concentrada em ler que me fosse impedido compreender.
Tem sido assim toda minha vida, só consigo atuar com entendimento. Claro que hoje aceito não haver explicação alguma para certos fatos, raros com certeza, caso contrário viveria imobilizada.
A mesma história também serve para ilustrar minha tese de que nada nesta vida ocorre por acaso. Se naquela tarde de 1968 o incrédulo Victor Hugo, ao invés do exemplar dominical do Correio do Povo, me tivesse dado uma bula para ler, teria eu me tornado médica? Farmacêutica? E se fosse a conta de luz? Engenheira? Contadora?
Não! Fui ser jornalista. “Comprovada” assim minha hipótese da supremacia dos fatos para a formação do ser humano
Comprovada entre aspas, ressalto, pois há ainda uma terceira verdade na qual acredito: todas as convicções podem ser derrubadas. Inclusive estas acima, que compõem apenas uma historinha bonitinha e verídica, mas manipulada para justificar minha existência como sou, conforme me convém, como fazemos todos.
Pela Globalização do voto
Brasil e Estados Unidos realizaram eleições nos últimos dias. Aqui escolhemos os prefeitos de nossas cidades, lá, o presidente.
Devo confessar que estive mais atenta às eleições norte-americanas que ao pleito que definiu quem vai dirigir Curitiba. Com todo respeito ao destino de nossos bairros, minha vida é bem mais afetada pelos desmandos de Washington que pelos desvarios dos alcaides municipais.
E olha que em matéria de desvarios nas prefeituras, o Brasil é pródigo.
Bush vai traduzir - tão simplistamente quanto sua aparente inteligência permite - o resultado das urnas como uma aceitação a sua terrorista cruzada anti-terrorismo. Agüentemos, pois, o que vem pela frente.
Uma lástima que a tal Globalização se confine aos limites da economia mundial. Eu quero voto globalizado já. Se as hemorróidas, ou o espírito vingador de seu pai, fazem com que Bush defina os juros que pago, os produtos que compro, meus preços e exportações... sou merecedora de escolher o presidente dos Estados Unidos. Eu e os bilhões de chineses.
Queria ver o destino do falso arauto da paz mundial.
eU OdeiU GenTI kI IsKrevI Axim *
A escola pública está abandonada. O Governo leiloa diplomas universitários país afora. Nem toda escola particular é uma maravilha, além de proibitiva para muitos. Todos estes argumentos de pais preocupados com a educação de seus filhos caem por terra quando conversamos (?) por dois minutos com qualquer um de seus pimpolhos no MSN, ICQ ou seja lá o software de comunicação eletrônico que se use. Se a gramática já estava morta há décadas, chegou a hora de terminar o serviço e matar de vez a ortografia.
“O que importa é que estão comunicando”, dizem alguns em defesa da série de neologismos como “naum” e “axim” que fere olhos minimamente puristas. “Quandu pricisa eskrevemu direitu”, argumentam os usuários de tais aberrações.
Quando necessário escrevem corretamente? Causa-me risos este argumento, tanto pela improbabilidade quanto pela não percepção de que SEMPRE é necessário escrever corretamente. Ou nossa vaidade começa pelos pés, que precisam estar calçados com um Nike Shox de 500 reais, passa por pernas e nádegas trajadas com uma Fórum de quase 300, sobe por um tronco coberto de Zoomp e termina no cabelo, com o corte e cor da moda?
Gostaria que nosso exército de meninos e meninas dedicasse aos neurônios a mesma atenção que oferece ao tecido adiposo, cuja mínima variação, para cima, é claro, capaz de levá-los à depressão e à anorexia.
Tudo bem, sei que sou de um tempo e lugar em que adolescentes desfilavam com livros para impressionarem meninos e meninas na cantina da escola ou faculdade. Não peço tanto pois entendo a revolução tecnológica pela qual estamos passando, sei que o saber está a um clique e que “Assim falou Zaratustra” é reconhecido hoje como uma banda de rock. Não ousaria pedir que conhecessem Nietzsche, muito embora não fosse má idéia.
Não sou contra a Internet e muito menos a culpo pelo que acontece. É um veículo fantástico. Lamento, contudo, que a mesma supervalorização da imagem percebida nas ruas e shoppings seja transferida de forma equivocada para o mundo virtual, de uma forma na qual o que vale é a estética das letras e não da escrita, por isso tantas maiúsculas e cores.
E se isto tudo é criatividade e eu estou por fora, lastimo. De minha parte, prefiro deixar a criação de palavras nas mãos de mestres como o poeta Manoel de Barros.
"O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém".**
** Manoel de Barros em Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada
* Nome de uma comunidade no Orkut
Entre ignóbeis e trojans
A pressão do mercado, dos clientes, minha própria e do chefe ganhou um aliado poderoso no processo de me fazer enlouquecer. Ou, pra usar um termo muito lembrado quando nos falta diagnóstico melhor, me “estressar”.
Não bastasse o cada vez mais curto tempo para cumprir as cada vez mais infindáveis demandas, eis que agora me chega todos os dias, mais de uma vez por dia, o tal JS/Fortnight.D, trojanzinho calhorda que me obriga a parar tudo o que estou fazendo, limpar os arquivos, entrar no regedit, limpar assinaturas, limpar policies e remover as urls pornográficas que se instalam em meus favoritos...
Estas tarefinhas, listadas tão sucintamente aqui, têm consumido entre duas a três horas dos meus dias (considerando apenas o notebook e não meu desktop). A irritação que tais impostores me impõem são talvez responsáveis por mais uma hora de prejuízo do meu tempo, período que levo para me acalmar, além de um agravamento da minha gastrite, um aumento considerável dos níveis de nicotina, alcatrão e cafeína no meu sangue e órgãos. Isto sem contar no desgaste emocional que este martírio me aflige ao me colocar em confronto direto com aqueles que esperam mais produtividade desta que aqui escreve numa tentativa de exorcisar os demônios.
Não sou defensora da criminalidade, de jeito algum, mas consigo entender a motivação dos invasores de bancos online em busca de senhas e golpes grandes ou pequenos. Terão um lucro. Até posso compreender o hacker que picha sites que considera, ingenuamente, “a cara” do new-capitalismo-globalizado. Confesso que até dou risada quando leio em algum jornal que roubaram a senha do Bill Gates ou algo do gênero.
Mas pelamordedeus!!!!! O que esta pobre e humilde jornalista-assalariada-terceiro-mundista tem a ver com tudo isso? Qual o mote do imbecil que nada mais tem a fazer a não ser criar vírus, trojans e coisas do gênero? Meu desespero o alivia em algo? O acúmulo ainda maior de trabalho em minha mesa, e-mail e arquivos de alguma forma purga as culpas e revoltas do ignóbil?
Alguém por favor, me explique.
P.S.: Desculpem se foi com o JS/Fortnight.D
As freiras contra-atacam
Jamais pensei que um dia estaria escrevendo uma linha em defesa de Rubens Barrichelo. Pois vou. Não torço por ele e nem contra ele. Não sou fã de Fórmula 1 e, além disso, não vejo o piloto como um vencedor. A mim parece que falta estrela na testa do rapaz. Acho-o meio bobo com aquela dancinha estúpida nas raras vezes em que sobe ao pódio.
Tudo isso, no entanto, não me cega ao ponto culpar o rapaz pelo episódio ocorrido no Grande Prêmio da Áustria, quando a Ferrari ordenou que deixasse Schumacher passar e, desta forma, vencer a prova.
Ouço na CBN e leio em alguns jornais que Rubinho se vendeu, que aceita naturalmente o papel de coadjuvante, bla blá, blá. Só ele faz isso. Ninguém tem chefe, cliente ou aceita as tais contrapartidas impostas pelos bancos. Vivemos num mundo de monges budistas. Poupem-me.
Quem acredita que a Fórmula 1 é um esporte? E no futebol... quem vai bater o pênalti se a artilharia do campeonato estiver empatada entre um jogador do time e outro de equipe qualquer? E se for conveniente ficar em segundo na chave para que, na próxima etapa, peguemos adversários mais fracos?
E o milésimo gol do Pelé?
Bobagens... tudo bobagens. É o mesmo que acreditar em Luta Livre, Big Brother, Casa dos artistas... etc.
É tudo show. It´s only business.
Misérias ao vivo
Apesar de ter no nome uma referência ao livro 1984, de George Orwell, para mim Big Brother está muito mais relacionado a uma outra obra. O que mais me chama a atenção neste tipo de programa (Big Brother, Casa dos Artistas, No Limite...) não é a existência de lentes e microfones permanentemente ligados, mas a submissão de alguns (escolhidos entre milhares de candidatos) a este exibicionismo pós-moderno. Penso que, neste sentido, estes shows estão muito mais para Ironweed, de William Kennedy, que para 1984.
Ironweed, magistralmente levado às telas por Hector Babenco (com Meryl Streep e Jack Nicholson), nos remete aos tempos da Grande Depressão norte-americana. No livro, e no filme, pessoas sem esperanças e expectativas se submetem a um desumano torneio de danças no qual o prêmio ficará para o casal que mais tempo se agüentar em pé.
A semelhança que encontro não está na riqueza dos personagens. Em Ironweed os personagens, materialmente miseráveis e psicologicamente desgraçados, se extenuam em busca de dinheiro e redenção. Em Big Brother os personagens se expõem por dinheiro e glória. Mais por glória, acredito. Materialmente não são miseráveis e, sob o aspecto psicológico, estão longe de ter uma humanidade literariamente desgraçada. São patéticos ou medíocres em suas exposições, quando muito.
Se em 1984 a vigilância do Grande Irmão é obra do stalinismo, em Ironweed a manipulação da miséria humana é absolutamente capitalista. É neste ponto que reside minha teoria que aproxima Big Brother a Ironweed, mais que ao livro de Orwell. Com adaptações, é claro. A Globo não colocaria no ar personagens tão ricos quanto Francis Phelan e Helen. Feios, sujos, desdentados e amargurados, são reais demais para adentrarem o lar dos telespectadores. O sofrimento deles é profundo e substanciado. Indigesto, pois.
Não... isto seria demais para nossos estômagos. Melhor jogar em nossos lares um bando de gente comum. Daquelas que, como apregoou Caetano Veloso, de perto não são normais... mas são conhecidas. Tipos previsíveis. Ambiciosos, maldosos, amigáveis desde que não lhe tentemos tomar o lugar ou que se sintam ameaçados, invejosos, sexuados, comezinhos. Pequenos, enfim. Como a maioria de nós.
Ainda assim, como em Ironweed o grupo de Big Brother luta para sair do esquecimento, abandonando suas pequenas ou grandes misérias (ao mesmo tempo em que as evidenciam).
E o público... ah, o público! Parte não gosta de tanta mesquinharia exposta, parte não tolera egos tão primitivos e parte aprecia tudo isto.
Quanto a mim... eu já agüento o gerente do banco, o síndico do prédio, a telefonista, o porteiro, os colegas de trabalho, os amigos, eu mesma... Por distração prefiro Francis e Helen, que ao menos me levam a um mundo desconhecido.