Quando passo na rua e vejo um automóvel com aqueles riscos que parecem feitos por prego, rasgando a lataria de ponta a ponta, logo penso que foi obra de alguém que nunca ralou para comprar um radinho de pilha sequer. Não passa por minha cabeça que alguém que conheça o valor do trabalho e do dinheiro cometa tal ato de vandalismo.
Então logo lembro que há uma parcela, não pequena, de pessoas que associam conquistas a sorte ou safadeza. O proprietário daquele carro ou o ganhou de alguém ou explorou alguém para tê-lo. A maldade (inveja?) humana dissocia trabalho x resultado. Criatividade, planejamento e ação x resultado.
E penso nisso hoje por um motivo completamente dona-de-casa-classe-média. É que vejo crescer o número de pessoas que, ao saberem que Cândida trabalha aqui em casa há 12 anos, arregalam os olhos e dizem: "que sorte"!
Sorte de quem? Minha? Dela?
Conheci Cândida através de uma amiga que a tinha como diarista, modo como os paranaenses chamam faxineiras. Naquela época, recém separada do segundo casamento, morava em um pequeno apartamento e só podia pagar pelo trabalho quinzenal da Cândida. Ela sempre foi "mulé cara", diferenciada.
Na medida em que as coisas foram melhorando, e um novo casamento veio, chegamos a ter duas visitas semanais. Um luxo. Bem que eu dava umas cantadas para ela ficar só com a gente, em vão. Cândida tinha como objetivo a construção de uma casa e, para isso, faxinas eram mais lucrativas que um emprego fixo mensal. Assim seguimos.
Cândida um dia quase perdeu o dedão do pé cortando grama na casa em que morava e ficou dois meses recolhida. Enquanto todas demais patroas trataram da reposição "da peça", eu fui lá no hospital onde ela estava, carregando uma sacola de guloseimas, e disse que ela não se preocupasse que continuaríamos pagando como se ela estivesse vindo aqui em casa. E assim fizemos.
Os sonhos foram caminhando em paralelo, cada qual do seu tamanho e dificuldade. Cândida começou a fazer a casa dela, e nós a nossa. Ao mesmo tempo quase. Com as duas quase prontas demos a derradeira cartada. Não oferecemos mundos e fundos e nenhuma grana que fugisse à realidade da sua categoria profissional. Lembramos simplesmente que o trabalho de diarista é extenuante. Que nossa nova casa era grande mas que o trabalho seria diluido ao longo da semana. Salientamos que estava na hora dela se acomodar um pouco. Deu certo.
Cândida não é "como da família". É uma das pessoas a quem mais respeito e admiro no mundo. Mulher dentro do real, nunca a vejo falar uma besteira, o que é muito mais do que encontro em 90% das demais pessoas. Mas tudo nos limites do certo. Ela entra às 9h e sai às 17h, de segunda a sexta. Tem férias anuais de 30 dias e, obviamente, todos os encargos recolhidos.
E tem umas regalias. Ou regalitos, como chamamos. Quando viajamos ela não precisa estar aqui todos os dias. E quando recebemos hóspedes, compensamos com folgas extra. Praticamente mobiliamos a casa dela. Com certeza pintamos e lajotamos a área externa com material que nos sobrou. Já ouvi que a "colocaríamos a perder", deste jeito.
Ri. Só pra exemplificar, quando temos festa num domingo, por exemplo, e recebemos 30 ou 40 pessoas, nem é preciso pedir que venha. Cá está ela. Pagamos um extra pois, como disse antes, Cândida não é "como se fosse da família".
Tenho claro que lealdade e bons serviços se conquista com bom tratamento e dinheiro, claro.
Sorte? Só se eu começar a acreditar que conheci a Cândida porque nasci em Porto Alegre, me formei em jornalismo, meus pais vieram morar no Paraná, conheci Goreti, que me apresentou Plínio, que me apresentou Lara, que me indicou um trabalho para eu vir morar em Curitiba e depois falou que Cândida tinha um dia livre...
Mas não tem nada a ver com sorte tudo isso. Só com vida e a forma como a conduzimos, sobretudo no trato com os outros.
Hoje vou causar inveja
Papinho dona-de-casa-classe-média. Vejo crescer o número de pessoas que, ao saberem que Cândida trabalha aqui em casa há 12 anos, arregalam os olhos e dizem: "que sorte"! Sorte de quem? Minha? Dela?